DISCURSO DIRECTO

28 fevereiro, 2007

Excertos - XX

“ Que importa saber quem sou? Afinal quem somos nós? Quem é cada um? Quem sou eu?... Enformei-me ao longo dos anos no aturado e quantas vezes penoso convívio de todos os momentos comigo próprio. Moldaram-me os pensamentos e os sentimentos íntimos, que tinham por objecto o mundo interior e o mundo exterior. Este, por seu lado – as pessoas e as coisas -, também me trabalhou e modelou como a barro as mãos do artífice. Um lavrar de artista, de que tanto pode sair um santo como um demónio!... O de que eu ando à procura não é, então, saber quem sou, mas donde venho. O sangue que corre nas veias, os humores que se herdam de avós, o nome, o conhecimento de possível estirpe… Aquele que de mim quiseram fazer, manobrando na sombra sem que por muito tempo eu o suspeitasse, não foi precisamente aquele que resultou. Não contaram comigo próprio. Sangue, cultura, meio, as coordenadas tópicas e crónicas – tudo isso faz o eu. Mas o próprio individuo, no permanente colóquio, no contínuo debate e embate consigo próprio, é que sobretudo vai formando a sua personalidade. O eu vai gerando e elaborando e enriquecendo o eu… A orfandade, a solidão, o isolamento! Não contaram comigo: e isso marcou o meu ser para toda a vida. E, se bem que com o dobrar dos anos o corpo se vá modificando, enfraquecendo, e a nossa própria memória de nós se vá esfumando e apagando, a última coisa que de nós restará até ao fim é a consciência do eu. Eu é das primeiras coisas de que se ganha consciência e a última de que se perde no limiar da morte…”

A Casa do Pó, de Fernando Campos


 
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